Por Ricardo J. Rabelo
Professor titular do Departamento de Automação e Sistemas da UFSC, coordenador-geral do Programa Institucional da Indústria 4.0 da UFSC, autor do texto-base da Estratégia Nacional da Indústria 4.0 para os Ministérios da Economia e da Ciência, Tecnologia e Inovação, membro da Vertical Manufatura 4.0 da Acate, membro de diversas redes científicas internacionais ligadas à automação e gestão industrial, membro do diretoria técnica do Fórum Mundial de Manufatura.

Após uma verdadeira avalanche de postagens, eventos e movimentações governamentais e de órgãos ligados à indústria nacional, relacionadas com a Indústria 4.0 nos últimos cinco anos, acompanhamos uma queda nas discussões, desde 2022, nos grandes fóruns regionais e nacionais. Como se o tema fosse uma questão de moda, que agora teria passado.

Embora seja normal haver acomodação nas discussões sobre determinado tema, após um tempo, o que não deveria ser normal é a maneira como isso reflete também nas profundas discussões e medidas sobre o assunto, ainda mais quando se está falando dos enormes impactos socioeconômicos, tecnológicos e ambientais do modelo da Indústria 4.0.

De um foco original concentrado em avanços da tecnologia, da digitalização e da gestão baseada em dados, como instrumental para melhoria de competitividade, em suas várias dimensões, o conceito de Indústria 4.0 vem sendo gradualmente amadurecido ao longo dos anos. Isto ocorreu à medida que, de um lado, as modernas empresas começaram a adotá-lo e a aprender com o processo; e do outro, inúmeras novas tecnologias e business drivers surgiram, assim como eventos mundiais inesperados e fortemente impactantes na sociedade, como a pandemia da Covid-19 e a guerra da Rússia-Ucrânia.

Nesta jornada da evolução da visão da Indústria 4.0 emerge a Indústria 5.0. Do ponto de vista europeu, esta ressalta os aspectos como: maior sustentabilidade ambiental, resiliência organizacional, além da compreensão de que o ser humano é o principal elemento de inovação e de transformação dentro de uma organização.

Na verdade, não muito distante disso, surgirá o movimento da Indústria 6.0 e outros que o sucederão. Nesta altura, o modelo de indústria como conhecemos, possivelmente, nem  existirá mais, tamanha são as transformações previstas, como a completa fusão dos mundos real e virtual, com a computação espacial e quântica, permeada pela inteligência artificial; a fabricação de peças ou componentes personalizados nas casas das pessoas ou em pequenas indústrias manufatureiras de bairro, graças às impressões 3D-4D com materiais inteligentes e recicláveis; drones e humanoides autônomos e máquinas auto(re)configuráveis; entre dezenas de outras mudanças disruptivas que surgirão, sendo que algumas já começam a mostrar seus sinais.

Esta indústria do futuro tenderá a ser o que poderíamos chamar de exponencial: um modelo de organização que tem como pilares as pessoas e as tecnologias contínuas e sustentáveis, e inteligentemente aprende e se recria para agilmente operar e aproveitar oportunidades em novos e variados mercados com disruptivos modelos de negócios e soluções, se plugando e desplugando flexivelmente em diversas cadeias de valor sob uma estratégia industry-as-a-service.

Na verdade, de forma muito direta, esse modelo está na essência do objetivo da Indústria 4.0: prepará-la, cultural, organizacional e tecnologicamente, para permanentemente mudá-la, de forma sustentável, em ciclos virtuosos de aumento de competitividade. Em outras palavras, a Indústria 4.0/5.0 não se trata de uma placa para se colocar na parede de um escritório. Trata-se de patamares concretos e tangíveis de nível de preparação, de competitividade e de excelência operacional alinhados às necessidades do século 21.

Os desafios da jornada de transformação da Indústria 3.0 para a 4.0 e também a 5.0 são imensos, de várias dimensões, requerendo recursos, tecnologias, conhecimento e parcerias de toda ordem, bem como pessoal altamente preparado. E estes desafios serão cada vez maiores se as nossas indústrias, de todos setores e portes, não começarem a se preparar agora. A questão é que, apesar dessas dificuldades todas, o mundo continua evoluindo mais rápido, com os países mais relevantes começando a trilhar firmemente sua jornada rumo à Indústria 5.0, ou à uma indústria do futuro. Portanto, estamos falando da literal sobrevivência das empresas, e não de algo apenas desejável de se ter.

Por variadas razões, a Estratégia Nacional da Indústria 4.0 não avançou como previsto nas discussões junto a todos os atores a partir do texto-base elaborado em 2020, e ainda não temos diretrizes nacionais voltadas a isso. Temos ações muito importantes sendo capitaneadas por variados órgãos, como Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), Confederação Nacional da Indústria (CNI)/Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Associação Brasileira de Internet Industrial (ABII), Associação Catarinense de Tecnologia (Acate), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), dentre outros, incluindo algumas universidades, como a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mas são ações um tanto isoladas, pouco conectadas, de baixa convergência e articulação entre si e, principalmente, nem sempre alinhadas de forma coordenada aos objetivos estratégicos e específicos catarinenses.

Precisamos de uma estratégia que considere a nossa realidade, características, vocações, prioridades e objetivos estratégicos. Uma estratégia ampla, que atue como um guia e instrumento de ações convergentes dos diferentes atores envolvidos no processo de transformação, que conduza nossas empresas ao futuro. Uma estratégia que, apesar da indústria ser uma das principais vocações e sistemas econômicos de Santa Catarina, ajude na diminuição da desindustrialização do país e no aumento dos seus níveis de produtividade e qualidade. Uma estratégia que fortaleça ainda mais o protagonismo da indústria e do ecossistema de inovação catarinenses, não apenas no mercado interno, mas que também contribua para tornar as empresas em grandes players no mercado internacional, com atores em cadeias de valor, gerando mais negócios e transformando o Estado em uma referência mundial em startups e empresas de tecnologia para indústrias, conhecidas como indtechs. Uma estratégia que crie um ambiente propício à mudança cultural de aversão ao risco, e que foque em inovação. Uma estratégia arrojada e disruptiva, que seja um instrumento que catapulte nossa sociedade a um novo patamar de desenvolvimento.

A despeito da complexidade que realizar esses processos representa, e de não haver uma direção única sobre como fazê-los, Santa Catarina tem vários elementos essenciais bem desenvolvidos para tal, como: vocação industrial e várias empresas de ponta que já iniciaram seu processo de transformação e que têm muito a ensinar; cultura empreendedora; a Federação das Indústrias (Fiesc) altamente organizada; avançados parques tecnológicos; o pujante, maduro e crescente ecossistema de inovação distribuído em todas as regiões; sistema bancário e de fomento com produtos voltados à modernização das indústrias; ótimas universidades, centros de PD&I e escolas de formação profissional industrial com modernos laboratórios; a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) moderna e eficiente; e a cultura de trabalho colaborativo baseada na tríplice hélice.

Porém, a operacionalização de uma estratégia como essa não acontece de um dia para o outro. É um processo lento, gradual e envolve muito investimento. O Vale do Silício se tornou a potência atual depois de 50 anos. A China iniciou seu pivotamento há 40 anos. A Acate iniciou suas atividades há mais de 35 anos. No estudo que realizei em final de 2020 sobre mais de 30 estratégias nacionais de Indústria 4.0 nos cinco continentes, como uma das bases para a elaboração do texto-base da Estratégia Nacional da Indústria 4.0, em todas o papel do poder público foi colocado como essencial na formulação de políticas públicas e na promoção, indução e fomento, mesmo que parcial, de ações na direção do fortalecimento do setor industrial.

Isso não significa adotar uma visão estatizante e muito menos desconectada das demais estratégias nacionais brasileiras. As boas práticas e estratégias internacionais de sucesso apontam claramente que é imperativo unir e contemplar visões de atores nas suas complementaridades, principalmente Estado, academia e escolas de formação, indústrias de portes e setores diferentes, empresas de tecnologia e ecossistema de inovação, sociedade civil e organizações de financiamento.

Isto porque as transformações necessárias e os impactos em maior escala da adoção da Indústria 4.0/5.0 transcendem os aspectos puramente industriais. Encampam áreas diversas, como cidades inteligentes, infraestruturas e logística, novos modelos de negócios digitais, tecnologias de inteligência, informação e comunicação, energia e meio ambiente, educação e moderna qualificação de recursos humanos, entre outros. Ou seja, a Indústria 4.0/5.0 é cada vez mais vista como um meio para o maior desenvolvimento, cooperação global, geração de riqueza e bem-estar da sociedade. Isso se aplica a praticamente qualquer tipo de setor industrial: do metalomecânico ao cerâmico, do moveleiro/madeireiro ao agro, da energia aos  laticínios e alimentos etc.

Especificamente sobre a Indústria 4.0/5.0, com base nas conclusões das demais estratégias internacionais, em relatórios acadêmicos qualificados, e em alguns estudos feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), observamos 11 eixos-base considerados em uma estratégia de visão holística do problema: Desenvolvimento Científico, Tecnológico e Inovação; Formação de Capital Humano; Cadeias de Suprimentos e de Valor; Ecossistemas de Inovação, Empreendedorismo e Startups; Modelos de Negócio Digitais; Infraestruturas Física e Digital; Segurança Cibernética; Implicações Sociais, Legais e Éticas; Regulação e Normalização Técnica; Fomento, Financiamento e Investimento; e Sustentabilidade Econômica, Social e Ambiental. Lidar com todos esses eixos, simultaneamente, é extremamente complexo, não apenas em relação à concepção da estratégia e do seu respectivo roadmap, mas também na execução e gestão.

Assim, são necessários programas e instrumentos de apoio e incentivo cientes de que as indústrias e demais envolvidos são de natureza complementares e intrinsecamente diferentes, com portes, graus de maturidade tecnológica e de competitividade específicos. Mais do que isso, há que se ter maturidade na idealização da estratégia, dos seus objetivos e metas, considerando uma visão de ciclo de vida com ações de levantamentos e diagnósticos; ações de semear e plantar; de regar e cultivar; de proteger, fortalecer e reforçar; e de colher e aprender/revisar. Uma estratégia de Estado, suprapartidária, em longo prazo, com pelo menos 30 anos, periodicamente refinada ao longo dos diversos governos, conforme as necessidades, recursos disponíveis e prioridades, com metas concretas e mensuráveis ao longo da sua execução, e que não fique apenas no papel. Santa Catarina tem conhecimento, competência e condições de fazer a estratégia da indústria do futuro no Estado.