Engenheiro agrônomo catarinense, Glauco Oliger, narra os principais momentos que fizeram Santa Catarina se tornar a maior produtora de maçãs do país
Por Gisele Krama – Fapesc
Fotos Ricardo Wolffenbüttel
Em pé, Glauco Olinger cantou o hino nacional em posição de respeito. Estava no auditório da reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde recebeu uma homenagem especial. Três dias depois, lá estava ele novamente recebendo os parabéns em um evento na Epagri, onde ajudou a plantar uma árvore para as próximas gerações. Quem o vê caminhando tranquilamente e tão disposto não imagina que o engenheiro agrônomo que mudou o curso da produção rural em Santa Catarina completou 100 anos em 17 de setembro de 2022, longevidade que atribui às maçãs catarinenses. Afinal, come uma fruta por dia para manter as doenças longe, diz ele com um largo sorriso.
Lageano de nascimento, Glauco enraizou profundas mudanças na forma de plantar e colher no Estado. Implantou o Serviço de Extensão Rural, que hoje é a Epagri; fundou o Centro de Ciências Agrárias da UFSC e contribuiu para tornar Santa Catarina referência na agricultura familiar, polo em fruticultura e líder nacional na produção de maçãs.
Mais do que números e títulos, Glauco orgulha-se das histórias que viveu e gosta de lembrar. Na primeira oportunidade que encontra já emenda o causo de quando foi até Brasília, nos anos de 1970, com uma caixa de maçã e uma ideia: convencer o amigo e ex-ministro da Fazenda Delfim Netto a custear um projeto de fruticultura de clima temperado.
Com bom humor e uma pitada de ousadia, Glauco conseguiu apoio do governo federal para subsidiar novos pomares em Santa Catarina. Foi assim que começou a recente e frutífera história da produção de maçãs em solo catarinense.
Como começou a sua carreira na agricultura?
Eu me formei [em 1946] dia 15 lá em Viçosa e no dia 17 casei com uma mineira. Não tinha emprego, mas casei com essa mineira chamada Maria Auxiliadora e vim embora sozinho.
Aqui, fui na Secretaria de Agricultura falar com o diretor de Administração, que era um lageano, o doutor Arruda. Ele me disse: “Nós estamos atrás de engenheiro agrônomo. Nós precisamos de professor em Canoinhas e Lages”. Eu vibrei. Lages é minha terra natal.
Eu fiquei em Lages menos de um ano [até 1948] como funcionário da Agricultura. Ganhava dinheiro só para pagar o hotel, não sobrava nada. Foi quando houve concurso para o Ministério da Agricultura e eu me inscrevi. Tirei o primeiro lugar.
Recebi do Ministério da Agricultura a possibilidade de escolher onde eu queria trabalhar em qualquer lugar do Brasil. Eu disse que queria trabalhar no fomento agrícola de Santa Catarina, a sede era Florianópolis. Então vim para Florianópolis [em 1949] e ali comecei a trabalhar ganhando o dobro.
Eu sempre tive muito mais sorte do que mérito. Eu não tenho mais idade para fazer charminho. Eu reconheço que tive uma sorte tremenda. Sempre estive cercado de gente competente, trabalhadora e, sobretudo, honesta.
Como começou o interesse por tornar SC uma referência em maçã?
Um dia, eu viajava pelo interior de Santa Catarina e recebi a notícia que o senhor René Frey, de Fraiburgo, estava fazendo um plantio de fruta de clima temperado, especialmente maçã.
Alguns franceses argelinos, com a independência da Argélia, vieram para o Brasil e procuraram Fraiburgo porque conheciam René. Eles convenceram René para fazer essa experimentação com fruta de clima temperado [a partir dos anos de 1970]. Quando eu cheguei a Florianópolis, o governador Ivo Silveira me chamou. Eu era, ao mesmo tempo, secretário da Agricultura e diretor da Acaresc. Ele disse: “Doutor Glauco, eu quero um impacto no meu governo e no setor agrícola, algo que produza efeito”. Eu me lembrei do René Frey. Em 15 dias, eu botei quatro agrônomos para colher dados. Eles me deram os elementos e eu escrevi o Profit, o Projeto de Fruticultura de Clima Temperado.
Entrei em contato com René Frey e disse: “O senhor me manda uma caixa de maçã, da melhor que o senhor tiver, porque eu vou a Brasília buscar recursos para o projeto de fruticultura”.
Eu peguei a caixa de maçã e fui direto ao então ministro da Agricultura, que se chamava Luís Fernando Cirne Lima. Dei uma maçã para ele provar e ele disse: “É uma delícia, Glauco”. Eu disse: “Pois é, eu preciso de financiamento. De três a quatro anos de carência e de dez a 12 anos para liquidação do empréstimo”.
Essa linha de crédito não existe em banco algum, nem banco do estado, nem Banco do Brasil. Eu queria começar com o Banco do Brasil. Ele disse: “Vai conversar com o Delfim”. Era o ministro da Fazenda na época, Delfim Neto. Ele telefonou para o Delfim e disse: “O Glauco quer expor um projeto pra ti. Quando você pode receber ele aí?”. E ele respondeu: “Agora. Manda ele aqui agora”.
Eu peguei e fui. Delfim estava lá sentado, de suspensório. Eu estou aqui com um projeto que precisa de financiamento, que não tem na linha do banco. Delfim foi falar com os assessores. Depois de meia hora entrou e me disse. “Glauco, vai embora. Já dei a ordem para abrir a linha de crédito”. Foi o que facilitou o financiamento e o desenvolvimento da maçã em Santa Catarina e outras frutas de clima temperado.
Foi só então que começou o cultivo de maçã em Santa Catarina?
A história da maçã em Santa Catarina começou oficialmente, institucionalmente, em 1895. Nesta época, no Alto Vale do Itajaí, a principal cultura que fundamentava a economia da região era o cultivo do fumo. De repente, aparece na raiz uma doença que começa a dizimar plantações. E, naquela época, o Alto Vale do Itajaí estava sob a jurisdição de Hermann Blumenau. E ele precisava de um técnico que buscasse uma solução para aquela doença.
Por esses acasos da vida, um anarquista fugiu da Itália para o Brasil. E por outras coincidências, esse anarquista era um intelectual e mantinha correspondência com Hermann Blumenau. Eles eram amigos, um italiano e outro de origem alemã.
Hermann Blumenau perguntou se ele não queria trabalhar em Santa Catarina e instalar uma estação experimental em Rio dos Cedros. Ele, na hora, aceitou e com isso foi feito o projeto que tomou o nome de Estação Agronômica de Veterinária de Santa Catarina, cujo objetivo fundamental era descobrir uma solução que debelasse os ataques feitos na raiz do fumo. E ele descobriu.
Mas ele era um anarquista e não se conformava com aquela vida de pesquisador. Ele achou que podia ser bem-sucedida a plantação de frutas de clima temperado. E aí passou a buscar mudas, em primeiro lugar, de maçã. Só de maçã, ele trouxe mais de 30 variedades de todas as partes do mundo. Não eram só de maçã, eram pêra, pêssego, ameixa, uva e marmelo. Nada disso existia em Santa Catarina.
E as iniciativas do italiano deram certo?
Em Lages tinha outro italiano chamado Formolo, muito inovador e que tinha uma boa chácara, onde hoje está o mercado público. O anarquista convenceu Formolo a fazer um grande pomar diversificado. Naquela época, era o maior pomar do Brasil, entre dois a três hectares de fruta. Esse pomar veio a ser mais tarde comprado por um fazendeiro lageano chamado Olívio Olinger, que por esses acasos da vida tornou-se pai de Glauco Olinger, que não sonhava que a vida que passou ali naquela chácara ia ser uma das inspirações para escrever o projeto de fruticultura de clima temperado, que deu avanço para o cultivo de maçã, que nos tornou livre de importações, não só Santa Catarina, mas o Brasil.
Antes do projeto de fruticultura, nós importávamos do exterior, como da Califórnia, mais de 200 mil toneladas. Atualmente, exportamos mais de 200 mil toneladas. E Santa Catarina produz mais da metade da produção total do Brasil. Os dois maiores produtores são os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que se inspirou na iniciativa catarinense.
O Vale do Rio do Peixe, na década de 1970, estava entrando em decadência socioeconômica. O pessoal vivia da lida na criação de porco, no plantio de milho e feijão. Em um hectare em que você produzia uma renda com milho, produzia dez vezes mais com maçã. Então você aumentava a renda com a mesma área, que não deixa de ser um tipo de reforma agrária vertical.
Antes do projeto de fruticultura, nós importávamos do exterior, como da Califórnia, mais de 200 mil toneladas de maçãs. Atualmente, exportamos mais de 200 mil toneladas. E Santa Catarina produz mais da metade da produção total do Brasil.
Glauco Olinger
Qual foi a participação dos japoneses no cultivo de maçãs?
Um dos grandes incentivadores das inovações tecnológicas na maçã se chamava Kenshi Ushirozawa. Ele era um pesquisador japonês, que veio aqui para Santa Catarina. Certo dia eu estava no escritório, e a secretária entra e me diz “Senhor Glauco, tem um cidadão se dizendo representante do governo japonês, que tem uma audiência com o senhor”.
Eu era secretário-executivo da Acaresc e secretário da Agricultura no governo de Ivo Silveira. De repente apareceu um japonês baixinho, sorridente. Ele disse “Pois é doutor Olinger, eu tenho uma reunião marcada hoje à noite com o governador Ivo Silveira, um jantar, onde eu vou pedir apoio do governo para instalar em São Joaquim uma colonização de japoneses com o objetivo fundamental de plantar maçãs”. Eu disse que isso vinha ao encontro dos nossos interesses.
“Então vou lhe fazer uma surpresa e mandar para Santa Catarina, para ser um consultor em pesquisa de maçã, um dos nossos cinco melhores pesquisadores que temos no Japão, que é o senhor Kenshi Ushirozawa”, me disse.
Esse doutor Kenshi veio e se apresentou pra mim. Eu arrumei um intérprete, que era filho de um agricultor de um assentamento de japoneses, lá em Curitibanos, chamado [Atsuo] Suzuki. Esse guri na época tinha 15 anos de idade, ele veio estudar Agronomia, tornou-se chefe de uma das maiores estações experimentais catarinenses, em Caçador. O doutor Kenshi, que orientou a unidade de pesquisa aplicada no pomar de São Joaquim, foi quem trouxe para o Brasil a maçã fuji. E hoje a melhor maçã fuji do mundo está em São Joaquim.
Na época ninguém conhecia fuji no Brasil, era desconhecida. Foi ele quem trouxe. Ele se tornou tão importante que criaram uma medalha, a medalha Kenshi Ushirozawa. Agora, recentemente, houve uma comemoração em Santa Catarina e um dos caras que ganhou essa medalha chama-se Glauco Olinger [risos].
Por que a fuji é tão boa em Santa Catarina?
Ela encontrou no clima e no solo de São Joaquim o ideal. A fuji teve um predomínio visível no mercado. Hoje é a fuji a que tem o maior valor.
Considerando as novas tecnologias, ainda dá para aumentar a produção em SC?
Muito. A palavra-chave é produtividade. É o aumento da capacidade produtiva da planta, do solo, das águas e do trabalho humano através da automação, da mecanização. As médias de produtividade podem aumentar e até dobrar, com o advento da engenharia genética. A grande ciência para o futuro, para a agricultura, para a produtividade é a engenharia genética. Ali está o segredo.