Ocupação do antigo campo de aviação do Campeche é discutida

O histórico de negociações da área, ociosa desde os anos 1940, demonstra que ela é disputada desde 1970

  

A maior parte do antigo campo de aviação é usado como pasto

 

No lugar onde ainda há vestígios da presença dos aviadores franceses, que no pacato Campeche aterrissaram suas aeronaves nos anos 1920, nada existe além de lembranças para quem conhece a história do lugar. Mas as intenções para ocupar a área que foi campo de aviação da Aéropostale são muitas e causam polêmica desde os anos 1970. Hoje, uma pequena parte do terreno de 323 mil m² é ocupada pelo Clube Social Catalina, da Aeronáutica. O restante abriga uma pracinha, localizada junto a um monumento em homenagem aos aviadores, e um vasto campo, onde, do lado direito, foram instaladas traves para os recorrentes jogos de futebol nos fins de semana e brincadeiras entre moradores nos fins de tarde. No restante do tempo, a vida passa ao lado daquele que foi espaço de experiências da empresa pioneira na aviação comercial.

O campo de aviação do Campeche está no meio de uma disputa de interesses desde 1973, quando a venda de terrenos do Ministério da Aeronáutica foi autorizada por lei federal sancionada pelo presidente Médici (1969-1974). O campo, construído em 1927, quase foi comercializado duas vezes entre os anos 1990 e 2000, pelo 5° Comar (Comando Aéreo Regional), de acordo com documentos anexos a um inquérito civil público movido em 2002, pela procuradora da República Samantha Chantal Dobrowolski. Por trás da ideia de impedir a venda do terreno estava a comunidade local, que nunca desistiu de transformar o campo de aviação numa grande área de lazer.

A luta de líderes comunitários levou a Aeronáutica a transferir a administração de um terço da área para a Secretaria do Patrimônio da União de Santa Catarina, com intenção de dar o primeiro passo para viabilizar a construção de um parque multicultural. A prefeitura solicitou 4.000 m² deste pedaço para construção de posto de saúde, o que desagradou o vice-presidente da Associação de Moradores do Campeche, Ataíde da Silva. “Vamos ter que partir para uma ação civil pública”, disse.

Questões locais e comunitárias, não menos importantes, à parte, a coordenadora de projetos da Fapesc (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina) e pesquisadora do campo de aviação do Campeche, Mônica Cristina Corrêa, alerta para o problema que o desmembramento do terreno pode representar. “Tudo isso é um patrimônio da história da Aeronáutica do Brasil, não é somente um terreno”, advertiu. Ela defende o uso da área como um todo.

 

União defende parceria da comunidade com prefeitura ou Estado

A superintendente da SPU (Secretaria do Patrimônio da União) de Santa Catarina, Isolde Espíndola,  quer destinar a área sob administração da União para construção de um parque multicultural, mas precisa que uma instituição pública solicite a cessão da área. Isolde defende a busca de uma solução tendo os pés no chão, o que exclui, segundo ela, a ideia de construir um grande parque. “É preciso muito dinheiro para fazer e depois manter alguma coisa lá”, pontuou.

Seguindo esse raciocínio, ela afirmou que a saída para a construção de um parque nos 118.660 m², transferidos da Aeronáutica para a União, é a comunidade estabelecer parceria com a prefeitura ou com o governo do Estado. Atualmente, o projeto do parque multicultural proposto pela Associação de Moradores do Campeche está sendo analisado pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

“Não tem sentido a UFSC, porque as áreas doadas para ela têm como finalidade ensino, pesquisa e extensão”, disse Isolde, que é enfática ao se posicionar sobre o desmembramento da área. “Não é necessária a área inteira para a preservação da memória. É uma área muito grande e é preciso dar um destino a ela”, disse, complementando: “A comunidade cuida e a Aeronáutica cuida. Se não já estava ocupada”.

 

Motivos para preservar a memória do antigo campo

O campo de aviação do Campeche, erguido pela Compagnie Générale Aéropostale, foi utilizado como escala da linha de correio aéreo entre a França e Santiago (capital do Chile), segundo informações da Base Aérea de Florianópolis. “Quando aqueles caras vieram para cá com aqueles teco-tecos, eles deram um grande passo para a globalização”, avaliou Mônica Corrêa, que realiza estudos da memória do lugar para dar base a um futuro projeto para a área onde ficava o aeródromo, que inclui a parte cedida pela Aeronáutica para União para construção de um parque multicultural.

Entre os aviadores estaria Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), que deixou para a humanidade a obra “O Pequeno Príncipe” (1943), pela qual ficou famoso. Ele e seus colegas, pilotos veteranos da Primeira Guerra Mundial, movimentaram a pacata vida dos pescadores, agricultores e criadores de gado do Campeche onde poucos carros eram vistos na época, ao mesmo tempo que iniciavam uma revolução no transporte pelos ares. 
Diante do marco histórico para a cidade e para o mundo, a pesquisadora defende o não desmembramento da área e o desenvolvimento de projeto para aquele grande espaço em parceria com profissionais que pensam a ocupação de extintas pistas de pouso que estavam na rota da Aéropostale. “O projeto precisa estar conectado com os anseios da comunidade, da memória e do futuro”, observou.

A companhia aérea francesa teve 28 cidades-escalas em três continentes no início dos anos 1920, incluindo Florianópolis. Todas elas fazem parte da Rede de Cidades da Aeropostal, que discute tornar a rota intercontinental da Compagnie Génerale Aéropostale um patrimônio imaterial da humanidade. 
A Rede foi formalizada no final de 2011, a partir de um acordo internacional de parceria para reforçar as trocas culturais, econômicas e comerciais entre as cidades-escala.

Resquícios da história da aviação

Resquícios de memória suscitam a passagem de aviadores franceses no Campeche. Um fica ao alcance dos olhos dos moradores do bairro e visitantes: o marco de pedra que homenageia os “pioneiros do ar” Antoine de Saint-Exupéry, Jean Mermoz e Henri Guillaumet, localizada numa das pontas do terreno, ao lado de um parquinho infantil.

Outro índice da presença, há menos de cem anos, dos desbravadores da aviação naquele local é a ruína da casa de transmissão de rádio sem fio, novidade na época, segundo Mônica Cristina Corrêa. “Antes usavam pombo correio”, relatou a pesquisadora. 

Segundo ela, todas as 28 cidades escalas da Aéropostale contavam com aeródromo (pistas), hangar, casa de transmissão de rádio sem fio e casa de piloto. Essa estrutura, conhecida como Popote, ainda está de pé em Florianópolis e deve receber restauração nos próximos anos. Fica ao lado do campo de pouso e é objeto de projeto de restauro proposto por Mônica, aprovado pelo Ipuf (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis), validado pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e aprovado previamente pelo Ministério da Cultura, onde passa por trâmites burocráticos.

Fonte: 

 

Letícia Kapper da Silva
@kapper_ND
FLORIANÓPOLIS

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